I. Introdução
A Lei n.º 17/2022, de 17 de agosto, (a “Lei”) veio transpor para a ordem jurídica interna a Diretiva (UE) 2019/1 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2018, que visa atribuir às autoridades da concorrência dos Estados-Membros competência para aplicarem a lei de forma mais eficaz e garantir o bom funcionamento do mercado interno.
Nesse sentido, a Lei veio alterar:
i) O Regime Jurídico da Concorrência (o “Regime Jurídico”), aprovado pela Lei n.º 19/2012, de 8 de maio; e
ii) Os Estatutos da Autoridade da Concorrência (“AdC”).
No âmbito do referido Regime Jurídico, a Lei veio proceder à alteração de diversos preceitos, divididos sistematicamente do seguinte modo:
- Capítulo I – Promoção e defesa da concorrência (artigos 2.º, 3.º, 5.º, 7.º, 8.º);
- Capítulo II – Práticas restritivas da concorrência (artigos 13.º a 19.º, 21.º a 25.º, 27.º a 35.º);
- Capítulo III – Operações de concentração de empresas (artigos º, 49.º, 55.º e 59.º);
- Capítulo IV – Estudos, inspeções e auditorias (artigo 64.º);
- Capítulo VII – Infrações e sanções (artigos 67.º a 69.º, 72.º a 74.º);
- Capítulo VIII – Dispensa ou redução da coima em processos de contraordenação por infração às regras de concorrência (artigos 76.º a 81.º);
- Capítulo IX – Recursos judiciais (artigos 84.º a 87.º, 89.º a 92.º); e
- Capítulo XI – Disposições finais e transitórias (artigo 96.º).
Entre as alterações aos referidos preceitos do Regime Jurídico, a Lei veio concretizar medidas significativas, destacando-se:
i) A responsabilidade das sociedades-mãe e a responsabilidade solidária nas associações empresariais;
ii) Os pressupostos atinentes ao cálculo da coima aplicável à empresa em causa, mais concretamente o volume de negócios total, a nível mundial;
iii) O alargamento generalizado dos prazos judiciais e administrativos;
iv) A eliminação do requisito do “prejuízo considerável” para a obtenção de efeito suspensivo da decisão judicial.
II. Responsabilidade das Sociedades-Mãe
No que se refere a ilícitos jusconcorrenciais, os destinatários das normas previstas no Regime Jurídico são mormente empresas, pelo que importará abordar, de forma sucinta, o conceito de empresa naquele previsto.
O Regime Jurídico integrava, anteriormente às alterações introduzidas pela Lei, no seu artigo 3.º, um conceito de empresa já coincidente com o assumido pela Jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), a qual introduziu a teoria da “unidade económica”. Desta teoria decorre, em suma, que “o conceito de empresa (…) deve ser entendido como designando uma unidade económica, mesmo que, do ponto de vista jurídico, essa unidade económica seja constituída por várias pessoas singulares ou colectivas.”[1].
Apesar de esta ideia-chave se manter na redação atual do preceito, o conceito de empresa veio a ser alargado pela Lei, uma vez que agora se considerará empresa “qualquer entidade que exerça uma atividade económica, independentemente do seu estatuto jurídico e do seu modo de financiamento” (cf. n.º 1 do artigo 3.º do Regime Jurídico), independentemente de essa atividade económica exercida consistir ou não “na oferta de bens ou serviços num determinado mercado”. Adicionalmente, deve referir-se que a consonância entre Legislação Nacional e Jurisprudência Comunitária contribuiu, de modo inequívoco, para uma aplicação mais uniforme do Direito da Concorrência.
O conceito de empresa como unidade económica acarreta consequências práticas[2], entre as quais salientamos as seguintes:
i) Os acordos entre entidades do mesmo grupo (leia-se, unidade económica) não podem ser considerados acordos entre empresas, para efeitos de aplicação dos artigos 101.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE) e 9.º do Regime Jurídico (correspondente ao artigo 4.º da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, entretanto revogada), dado que aquelas serão consideradas como a mesma empresa, consubstanciando-se, assim, em acordos dentro da mesma empresa e não entre empresas;
ii) As infrações praticadas podem ser imputadas à unidade económica e não somente à entidade na origem da sua prática. Assim, por exemplo, uma sociedade-mãe poderá ser responsabilizada e sancionada por infrações cometidas pelas suas subsidiárias.
Em conformidade com o supra exposto, no que diz respeito à responsabilidade das sociedades-mãe pelas infrações jusconcorrenciais cometidas pelas suas subsidiárias, a nova versão do Regime Jurídico prevê agora, na alínea a) do n.º 2 do artigo 73.º, a possibilidade de ser responsabilizada qualquer entidade (leia-se, a sociedade-mãe) que integre a “unidade económica” da alegada infratora e exerça sobre esta, direta ou indiretamente, uma “influência determinante”. O Regime Jurídico deixa transparecer, deste modo, que passou a aceitar que as pessoas (leia-se, empresas) que integrem a mesma unidade económica e exerçam influência determinante, direta ou indireta, “sobre a pessoa que praticou os factos constitutivos da infração” possam ser punidas por infrações jusconcorrenciais, visto que anteriormente só existia menção ao conceito de empresa no n.º 8 do referido artigo 73.º do Regime Jurídico. Simultaneamente, o legislador demonstrou, com o regime consagrado no Regime Jurídico, seguir de perto a Jurisprudência Comunitária, nomeadamente a Jurisprudência AKZO NOBEL, cujo entendimento é o de que “o comportamento da filial pode ser imputado à sociedade-mãe”[3].
Por outro lado, é importante salientar o n.º 3 do artigo 73.º, introduzido pela Lei, o qual dispõe que, para efeitos da alínea a) do n.º 2 do artigo 73.º, “presume-se que uma pessoa exerce influência determinante sobre outra quando detém 90% ou mais do seu capital social, salvo prova em contrário.”. Salienta-se que a presunção de influência determinante baseia-se no grau de controlo que a sociedade-mãe exerce sobre as subsidiárias[4], cuja existência não se verifica somente nos casos em que a sociedade-mãe detém 90% ou mais do capital social da subsidiária. Mediante uma análise casuística, que se demonstra imperativa, poderão existir outros fatores demonstrativos da referida influência determinante e do referido controlo. Neste sentido, encontramos a Jurisprudência GOLDMAN SACHS que apresenta como possíveis fatores a ter em conta, nomeadamente, o exercício de todos os direitos de voto da subsidiária, o poder de nomear membros de diversos conselhos de administração, de convocar accionistas para assembleias e de propor a destituição dos administradores ou de todos os conselhos de administração[5].
Conclui-se, portanto, que a influência determinante se presume nos casos em que determinada “pessoa” detenha 90% ou mais do capital social de outra, assumindo-se que a política seguida pela subsidiária é determinada pela sociedade-mãe porque os órgãos sociais que determinam tal política são comuns a ambas[6]. De modo semelhante, nos casos em que não se detém tal percentagem mas se verificam outros fatores como os enunciados que, isoladamente ou em conjunto, são suficientes para determinar a existência de um efetivo exercício de influência determinante, poderemos estar perante uma situação equivalente ao acionar da referida presunção. A título exemplificativo, na Jurisprudência Nacional, a Autoridade da Concorrência (AdC) mencionou outros fatores, para além da percentagem de capital social detida, que indiciam o exercício de uma influência determinante, nomeadamente, o facto de a sociedade-mãe não dispor de “quaisquer quadros para além dos membros que integram os seus órgãos sociais, sendo apoiada em regime de partilha de serviços e colaboradores afetos às participadas"[7].
A expressão “salvo prova em contrário” decorrente do n.º 3 do artigo 73.º do Regime Jurídico demonstra que a presunção a que nos referimos supra poderá ser ilidida, caso a sociedade-mãe apresente elementos de prova suscetíveis de demonstrar que a sua subsidiária se comporta de forma autónoma no mercado. Neste âmbito, o TJUE frisa que para se determinar o grau de autonomia da subsidiária no mercado importa ter em consideração “todos os elementos pertinentes relativos aos vínculos económicos, organizacionais e jurídicos que unem essa filial à sociedade-mãe, que podem variar de caso para caso e que, como tal, não podem ser objeto de uma enumeração exaustiva”[8]. A problemática reside, contudo, no facto de, ao não se efetuar uma enumeração ou uma “enumeração exaustiva”, elencando-se somente alguns critérios a ter em consideração, se poder estar a prejudicar o exercício do direito de defesa das sociedades-mãe.
III. Responsabilidade Solidária nas Associações de Empresas
Além de se dirigir às empresas, o artigo 101.º do TFUE é também aplicável às respetivas associações de empresas. Deve referir-se que, tal como o conceito de empresa, também o conceito de associação de empresas tem um entendimento funcional, não estando dependente de qualificações formais quanto ao tipo de associação em questão. Assim, se uma associação de empresas se tiver, entretanto, constituído como uma sociedade comercial não se poderá afastar essa qualificação, como ficou evidente na Jurisprudência MASTERCARD[9].
Entrando, agora, no âmago da questão, salienta-se que a anterior versão do Regime Jurídico, mais especificamente o n.º 8 do artigo 73.º, já consagrava um regime de responsabilidade solidária das empresas cujos representantes fossem, ao tempo da infração, membros dos órgãos diretivos de uma associação de empresas, no caso de esta ser condenada ao pagamento de uma coima em sede de processo contraordenacional, com exceção dos casos em que aquelas empresas tivessem lavrado por escrito a sua oposição à decisão que constitui a infração ou da qual a mesma resultou. Com a entrada em vigor da Lei, veio prever-se, no n.º 11 do artigo 73.º do referido Regime Jurídico, que uma associação de empresas que seja objeto de uma coima ou de uma sanção pecuniária compulsória e se encontre em situação de insolvência, deve solicitar às empresas associadas “uma contribuição com vista a assegurar aquele pagamento, fixando a AdC prazo para efeitos de prestação dessa contribuição”.
Assim, nesta situação deverá a associação de empresas solicitar a todas as suas empresas associadas a sua quota-parte de contribuição para assegurar o pagamento da coima, tal como decorre do referido preceito. Caso as contribuições solicitadas às empresas associadas não tenham sido integralmente recebidas, configura-se a situação de responsabilidade solidária das empresas cujos representantes fossem membros dos órgãos diretivos da associação de empresas ao tempo da infração (cf. n.º 12 do artigo 73.º do Regime Jurídico) e ainda, a título subsidiário, a responsabilidade solidária das empresas que “exerciam atividades no mercado em que foi cometida a infração” (cf. n.º 13 do artigo 73.º do Regime Jurídico). Observe-se, porém, que em ambos os casos mencionados, não existirá sujeição destas empresas à responsabilidade solidária caso demonstrem que, “antes do início da investigação, desconheciam, ou se distanciaram ativamente, e não executaram a decisão que constituiu a infração ou da qual a mesma resultou”.
IV. Determinação da Medida da Coima: O Volume de Negócios Mundial
A par da problemática relativa à responsabilidade das sociedades-mãe, releva ainda uma outra, atinente à base de cálculo da coima aplicável à empresa. O Regime Jurídico, em consonância com o disposto no n.º 2 do artigo 23.º do Regulamento (CE) n.º 1/2003, de 16 de dezembro de 2002, estabelece um modelo assente numa percentagem (máxima de 10%) do volume de negócios total da empresa em causa. Saliente-se que se tem em consideração o volume de negócios não das entidades individualmente consideradas, mas da empresa em que estas se integram[10]. Porém, enquanto a disposição comunitária mencionada sempre assumiu como referência o volume de negócios total da empresa, o Regime Jurídico não adotava a mesma referência para efeitos do cálculo da medida da coima.
Neste âmbito, assistimos a uma alteração dos pressupostos que levam à determinação da medida da coima. Na redação anterior, o n.º 2 do artigo 69.º dispunha que “ (…) a coima determinada nos termos do n.º 1 não pode exceder 10 % do volume de negócios realizado no exercício imediatamente anterior à decisão final condenatória proferida pela Autoridade da Concorrência (…)”. A redação atual do preceito (n.º 4), dada pela Lei n.º 17/2022, diz-nos que “(…) o montante máximo da coima aplicável não pode exceder 10 % do volume de negócios total, a nível mundial, realizado (...) pelo conjunto de pessoas que integrem cada uma das empresas infratoras (…)”. Observa-se, assim a introdução do elemento do “volume de negócios total, a nível mundial”. Aponta-se esta introdução como uma evidência da pretensão do Legislador: a harmonização com o Regulamento (CE) n.º1/2003, anteriormente mencionado, e com o n.º 2 do artigo 13.º da Diretiva (UE) 2019/1 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2018. Note-se que, da nossa perspetiva, volume de negócios mundial ou volume de negócios total são sinónimos e passíveis de utilização indiscriminada.
A nosso ver, trata-se de uma opção discutível, mas que, independentemente do seu mérito, impõe três considerações.
A primeira prende-se com a ratio da lei. De facto, tanto o TFUE como o Regime Jurídico direcionam-se a comportamentos transnacionais. Contudo, este último terá ainda como destinatários um conjunto devidamente identificado de empresas que atuam, exclusivamente, no território nacional. Nestes casos, não parece ter sentido aplicar um critério que, ab initio, não é passível de ser aplicado. No limite, pensamos que deveria ter sido estipulada uma ressalva aplicável a estes casos.
Por outro lado, coloca-se a situação específica das multinacionais presentes em Portugal. Em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 18.º do Regime Geral das Contraordenações, o artigo 69.º do Regime Jurídico, n.º 1, alínea b) elege como um dos critérios para a determinação da coima a “natureza e a dimensão do mercado afetado pela infração”. Ora, se determinada prática tem lugar unicamente no mercado nacional (leia-se português) que é, portanto, o mercado afetado, não fará grande sentido utilizar outro volume de negócios que não o exclusivamente nacional como base para a determinação da medida da coima. Isto porque a percentagem aplicada sobre o seu volume de negócios total e não sobre o volume de negócios resultante da atividade da empresa em Portugal resulta num valor extremamente avultado, suscitando-se assim questões à luz do princípio da proporcionalidade.
Indo ainda mais longe, caso estivéssemos realmente perante uma situação de violação de regras em vários mercados, ou no “mercado total” de atuação da empresa, estaríamos perante uma situação transnacional. Ora, neste tipo de situações além-fronteiras, a AdC não goza, normalmente, de competências para investigar e sancionar, recaindo tal responsabilidade sobre a Comissão Europeia, nos termos do n.º 4 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 125/2014, de 18 de Agosto.
Note-se que, anteriormente, o Regime Jurídico não impedia a AdC de utilizar o volume de negócios total de determinada empresa como base de cálculo. Simplesmente, atenta a consideração do “mercado afetado” como critério de determinação da medida da coima, tal somente poderia suceder se o comportamento censurado tivesse afetado o mercado total, no qual atuasse a empresa. Isto é, a avaliação seria sempre casuística, não se impondo, assim, a mesma solução legal para casos materialmente diferentes.
V. Prazos e Recursos
A nova versão do Regime Jurídico procedeu a um alargamento generalizado dos prazos judiciais e administrativos. No que diz respeito às regras gerais dos prazos, o regime jurídico anterior possibilitava uma prorrogação ad hoc e de igual período ao inicialmente concedido. No entanto, a nova versão do Regime Jurídico estabelece que a prorrogação do prazo fixado legalmente ou por decisão da AdC ocorre uma única vez e tem como período máximo 30 dias (cf. n.º 3 do artigo 14.º do Regime Jurídico).
Por sua vez, relativamente à instrução do processo, a nova versão do Regime Jurídico alargou o prazo razoável de pronúncia à nota de ilicitude, por escrito, “sobre as questões que possam interessar à decisão do processo, sobre as provas produzidas, bem como, sendo o caso, sobre as sanções em que incorre e para que requeira as diligências complementares de prova que considere convenientes” de 20 dias úteis para um prazo não inferior a 30 dias úteis (cf. n.º 1 do artigo 25.º do Regime Jurídico).
Além disso, a nova versão do Regime Jurídico procedeu ao alargamento do prazo para a interposição de recurso da decisão final, passando dos anteriores 30 dias úteis para 60 dias, em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 87.º do Regime Jurídico.
No que diz respeito aos recursos, o requerimento para a obtenção de efeito suspensivo da decisão judicial não exige a verificação de “prejuízo considerável”, em oposição à versão anterior do Regime Jurídico. A constitucionalidade da norma constante na anterior versão do Regime Jurídico, mais concretamente a interpretação quanto à exigência de prestação de caução para atribuição de efeito suspensivo ao recurso da decisão da AdC, foi objeto de análise pelo Tribunal Constitucional (TC). Com efeito, o TC, no Acórdão n.º 445/2018, de 2 de outubro[11], julgou inconstitucional o n.º 5 do artigo 84.º do Regime Jurídico, “por determinar que ao recurso de decisões proferidas pela Autoridade da Concorrência que apliquem coimas apenas pode ser atribuído efeito suspensivo quando a execução da decisão cause ao visado prejuízo considerável e este preste caução, em sua substituição, por violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 20.º da Constituição, e concretizado, no âmbito da justiça administrativa, no artigo 268.º, n.º 4, da Constituição, entendido em articulação com o princípio da proporcionalidade implicado no artigo 18.º, n.º 2, e o princípio da presunção de inocência em processo contra-ordenacional, decorrente do artigo 32.º, n.ºs 2 e 10, da Constituição.”.
A declaração de inconstitucionalidade da norma gerou controvérsia (vide, neste sentido, a Declaração de Voto de Vencido do Conselheiro João Pedro Caupers), acabando o TC por, mais tarde, no Acórdão n.º 776/2019, de 17 de dezembro determinar que “a atribuição de efeito meramente devolutivo ao recurso interposto de atos de aplicação de coimas não ofende qualquer preceito constitucional”[12] e, por isso, “a norma do artigo 84.º, n.º 5, do Regime Jurídico da Concorrência, aprovado pela Lei n.º 19/2012, de 8 de maio, a qual determina que a impugnação judicial de decisões da Autoridade da Concorrência que apliquem coima têm, em regra, efeito meramente devolutivo, apenas lhe podendo ser atribuído efeito suspensivo quando a execução da decisão cause ao visado prejuízo considerável e este preste caução, em sua substituição” não era inconstitucional. Neste contexto, o TC considerou ainda que a norma em questão “não viola o princípio da tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 20.º” da Constituição da República Portuguesa (CRP), concretizado pelo n.º 4 do artigo 268.º da CRP, “entendido em articulação com o princípio da proporcionalidade implicado no artigo 18.º, n.º 2, e o princípio da presunção de inocência em processo contraordenacional, decorrente do artigo 32.º, n.ºs 2 e 10” da CRP, “não sendo, por isso, inconstitucional”. Por fim, o TC considerou também que “não se pode extrair do princípio da tutela jurisdicional efetiva a imposição constitucional da regra do efeito suspensivo”[13]. Neste sentido, a alteração do preceito legal em análise contribuiu para sanar a referida controvérsia.
Com efeito, o n.º 5 do artigo 84.º do Regime Jurídico estabelece agora que, no “caso de decisões que apliquem coimas ou outras sanções previstas na lei, o visado pode requerer, ao interpor o recurso, que o mesmo tenha efeito suspensivo quando se ofereça para prestar caução, no prazo de 20 dias, no valor de metade da coima aplicada, ficando a atribuição desse efeito condicionada à efetiva prestação de caução”. Ou seja, contrariamente ao consagrado no regime anterior, em que o prazo e o montante da caução eram determinados pelo Tribunal, a nova versão do Regime Jurídico prevê legalmente o prazo para prestar caução de 20 dias e a prestação de caução no montante de metade da coima aplicada. Assim sendo, o papel do Tribunal foi claramente reduzido, uma vez que somente os moldes da prestação da caução passam a ser determinados pelo mesmo.
VI. Aplicação da Lei no Tempo
Nos termos do n.º 1 do artigo 9.º da Lei n.º 17/2022, as alterações ao Regime Jurídico aplicam-se aos processos desencadeados após a entrada em vigor do referido diploma legal. É de salientar que a entrada em vigor da Lei n.º 17/2022 ocorreu 30 dias após a sua publicação, em conformidade com o disposto no artigo 10.º da Lei n.º 17/2022, ou seja, a 16 de setembro de 2022.
VII. Conclusões
O Regime Jurídico já apresentava, na versão anterior, um conceito de empresa coincidente com o apresentado pela Jurisprudência do TJUE. No entanto, não era percetível se seria possível a responsabilização das empresas enquanto unidade económica, e, em caso afirmativo, em que termos tal responsabilização poderia ocorrer. Atualmente, o Regime Jurídico apresenta, de forma inequívoca, a possibilidade de responsabilização das sociedades-mãe pelas infrações cometidas pelas suas subsidiárias. Note-se que este tema era já bastante debatido na Jurisprudência Comunitária, o que acaba por indiciar uma aproximação cada vez maior da Legislação Nacional ao Direito da União Europeia. Além disso, são acomodadas alterações à luz do Direito Comunitário no que diz respeito à presunção da influência determinante e à possibilidade de esta ser ilidida, dado que é no seio deste que a matéria de Direito da Concorrência é predominantemente desenvolvida.
Relativamente à responsabilidade solidária nas associações empresariais, as alterações introduzidas são de extrema importância. Com efeito, da antiga versão do Regime Jurídico apesar da possibilidade de responsabilidade solidária das empresas que fossem membros de uma associação, no caso de esta ser condenada ao pagamento de uma coima, os termos de tal responsabilidade não eram definidos, suscitando dúvidas quanto à pertinência da própria solução legislativa. Atualmente, apresenta-se um regime de responsabilidade solidária nas associações empresariais que resulta mais detalhado e claro.
No que diz respeito à determinação/cálculo da medida da coima, assiste-se a uma alteração de significativa importância e merecedora de alguma crítica. Anteriormente tinha-se em consideração, tal como no Direito Comunitário, a percentagem máxima de 10% do volume de negócios da empresa. Porém, e contrariamente ao Direito Comunitário, não se definia se o volume a ter em conta seria o nacional ou total, o que comparativamente com a atual solução parece ser mais coerente, dado que possibilitava a escolha (entre nacional e total) por parte da AdC, consoante os casos que lhe fossem apresentados. É evidente a necessidade de uniformização do Direito da Concorrência. Contudo, nem todas as soluções legais do Direito Comunitário serão passíveis de transposição, ou pelo menos de total transposição, para o Direito Nacional. Conclui-se, portanto, que tal alteração legislativa deveria ter sido alvo de maior atenção e cautela.
Por fim, quanto aos prazos, decorre das alterações efetuadas uma limitação da prorrogação dos prazos e alargamento destes, nomeadamente os relativos à pronúncia à nota de ilicitude e à interposição de recurso de decisões interlocutórias e decisões finais. Salienta-se, por fim, a alteração legislativa em sede de matéria de recursos que procedeu a eliminação do requisito “prejuízo considerável” e o solucionar da questão ao nível da constitucionalidade do n.º 5 do artigo 84.º, já abordada pelo TC.
[1] Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (Terceira Secção), processo C‑97/08 P, 10 de setembro de 2009, parágrafo 55.
[2] Miguel Sousa Ferro, Práticas Restritivas da Concorrência: Súmula Orientada para a Prática Judicial, Curso de Formação para Juízes Nacionais em Direito da Concorrência, Coord. de Teresa Moreira e Miguel Sousa Ferro, 2010, p. 13. Disponível para consulta em: https://institutoeuropeu.eu/images/stories/E-book.pdf.
[3] Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (Terceira Secção), de 10 de setembro de 2009, Processo C 97/08 P, parágrafo 72.
[4] Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (Segunda Secção), de 27 de janeiro de 2021, Processo C-595/18 P, parágrafo 35.
[5] Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (Segunda Secção), de 27 de janeiro de 2021, Processo C-595/18 P, parágrafos 57 e 71.
[6] Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 25 de outubro de 1983, Processo C-107/82, parágrafo 50.
[7] Acórdão do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, 1º Juízo, de 20 de outubro de 2016, Processo 36/16.0YUSTR, página 126.
[8] Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (Terceira Secção), de 10 de setembro de 2009, Processo C 97/08 P, parágrafos 72 e 74.
[9] Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (Terceira Secção), de 11 de setembro de 2014, Processo C-382/12 P, parágrafo 64.
[10] Margarida Caldeira, Da Imputação, à Sociedade-Mãe, da Conduta Ilícita da Subsidiária no âmbito do Direito da Concorrência, 2018, pp. 30-31.
[11] Processo n.º 1378/17.
[12] Declaração de Voto de Vencido do Conselheiro João Pedro Caupers no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 445/2018, de 2 de outubro.
[13] MARGARIDA CORREIA. Comentário de Jurisprudência – Acórdão do Tribunal Constitucional de 8 de junho de 2016, PEUGEOT PORTUGAL AUTOMÓVEIS, S.A. CONTRA AUTORIDADE DA CONCORRÊNCIA – Efeito Devolutivo da Interposição do Recurso de Impugnação Judicial, p. 252. Acessível em https://www.concorrencia.pt/sites/default/files/imported-magazines/CR_26_Jurisprudencia.pdf.